A primeira coisa que os defuntos fazem depois de enterrados, é abrirem os olhos*. E depois a boca e aí não param mais. Constatei
isso da forma mais assustadora possível, no enterro da minha avó que,
coitada, mal teve a primeira pá de terra jogada sobre seu caixão, já chamava, veja você, pelo meu nome:
- Ricardo seu moleque! Isso é invenção sua? Me tire daqui. Que lugar escuro é esse? Quem é esse povo que não para de falar?
Ninguém
ficou pra contar história, é claro. Só eu, que fiquei com tanto medo
que da beira da cova não me movi. Não até minha avó me chamar
de novo, pedindo que eu ajudasse ela a sair dali. Era tão inacreditável
que acabei obedecendo, vejam só, vovó estava viva! E pálida. Abri a
tampa do caixão e ela se sentou, esfregou os olhos, ajeitou o seu
querido óculos com o qual fora enterrada e a primeira coisa que disse
ao me ver foi:
- Que cara é essa, Ricardo? Você tá mais magro também.
Bem que eu disse a sua mãe, você tem que comer bastante e agora que eu
morri, não tem mais minhas comidas, vai perder peso. Vê se come direito, menino.
Eu só consegui balbuciar:
- Mas...Vó, você tá viva!
- Não seja
leso, menino! Estou mortinha! E não ficou ninguém pra falar comigo? Eu
devia ter ficado deitada mesmo onde estava, que povo mais mal
agradecido e sem coração. Aliás, é o que vou fazer mesmo! Passe bem, meu
neto e coma direito. Ahh, por favor, peça pra esse pessoal
todo fazer silêncio, assim não tem quem descanse.
E me olhou nos
olhos como nunca tinha feito e apertou meu braço, deixando uma marca
esquisita e do mesmo jeito que acordou, caiu durinha no caixão, com os dedos cruzados e um quase sorriso no rosto, cara de quem finalmente vai descansar. Tão incrível foi aquilo que eu só sabia arregalar os olhos. Enfim, fechei a tampa do caixão, bati a terra da roupa e reparei na estranha
marca no meu braço que minha avó tinha deixado. Junto com ela, percebi
outra coisa: apesar de não ter uma alma viva no cemitério,
ouvia pessoas falando comigo, pedindo ajuda, perguntando as horas,
perguntando onde estavam, todo tipo de coisa.
Não sei o que ela fez mas
agora eu podia ouví-los, todos os defuntos que depois de enterrados,
abriam os olhos e falavam sem parar. Escuto eles o tempo todo. Tudo culpa da minha avó!
*A primeira frase é do Mário Quintana, uma história chamada Conto Azul, no qual ele só escreveu esse trecho e ficou tão horrorizado com o que poderia vir dessa descoberta, que assim deixou como estava. Carol me apresentou esse trecho e propôs que eu terminasse pro Quintana. Aí está! Não tem cara de final, mas se você quiser, pode terminar essa história inclusive.
4 comentários:
Boa Stuart huahahahahaa
^^ que história .... hahahah
Não sei se é a proposta, mas isso dá um ótimo prólogo para as desventuras do Ricardo, o menino que podia falar com os mortos! X)
Um super abraço,
tio .faso
Concordo com Faso!
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